Purgatório: a cozinha fica aqui
PUBLISHING | PUBLICAÇÃO
O objetivo deste projeto, contemplado pelo edital de Histórias em Quadrinhos da Lei Paulo Gustavo, é a produção de uma história em quadrinho autobiográfica, que resulta da minha experiência como cozinheira profissional. Para construir esta narrativa, a personagem principal inicia um percurso de auto descoberta em um ambiente onde as jornadas de trabalho são abusivas. Em meio a diversas situações de bullying numa cozinha de alta gastronomia, ela se acidenta e acorda em um universo paralelo, chamado Purgatório.
Para a construção desse imaginário, a arquitetura dos bairros com elementos da cozinha ajudam a contar a história visualmente. Como, por exemplo, os arranha-céus que são feitos de sushis, ou a representação do minúsculo apartamento da protagonista que fica num conjunto habitacional de caixas de ovos.
Desta forma, a história em quadrinhos ilustra uma realidade tão presente na sociedade em que vivemos, mas que poucas vezes nos é possível sentir apenas como um "pesadelo". Essa narrativa pode também ser lida como uma crítica ao sistema capitalista, que opera enriquecendo os mais ricos e empobrece cada vez mais os mais pobres, abrindo portas para uns e limitando os sonhos de outros.
A minha intenção com esse quadrinho é refletir sobre experiências de trauma que podem abrir espaço para uma busca interior pelo que faz sentido na vida, a partir do que é vivenciado pela jovem cozinheira. Este livro é também uma metáfora, que com uma visão crítica, expõe a violência de um sistema de trabalho que tende a nos usurpar o sentido da vida. Além de também, do projeto ser pra mim, uma realização como artista visual.
2024
SINOPSE
No início dessa narrativa, a personagem acorda em seu quarto e começa a se arrumar para ir à uma entrevista de emprego. Ela se encontra ansiosa por querer trabalhar em um bom restaurante, até porque, já passou por entrevistas nada bem sucedidas anteriormente, mas inesperadamente, chega um pacote que lhe deixa intrigada. Sua rotina segue, até que no momento de voltar para casa, ela sofre um acidente e acorda desmemoriada em uma realidade paralela.
No bairro do Purgatório, local onde ela acorda, as pessoas trabalham para sobreviver, e quem não consegue um emprego, é obrigado a viver no Inferno, já os mais abastados conseguem viver no Céu, usufruindo de todos os benefícios do paraíso. Tempos depois, ainda dentro desse novo universo, a personagem consegue um emprego num badalado restaurante. O que parecia ser uma boa conquista a princípio, se desenrola como um dos seus piores pesadelos.
A narrativa do quadrinho se expande em torno das suas mais diversas aprovações no Purgatório. E em meio a tantos desafios, a personagem se sente atormentada pelos problemas que a rodeiam, até que decide deixar o restaurante e é alertada que a sua realidade seria muito pior fora dali, no Inferno. Amedrontada e exausta de tudo, começa mais um dia tenebroso de trabalho na cozinha, onde todos os colegas de trabalho estavam extremamente estressados. Comidas queimaram, encanamentos estouraram, pratos caíram no chão, e no meio desse caos, a protagonista avista aquele pacote misterioso mais uma vez. Ao examinar cautelosamente o que havia dentro dele, ela começa a recordar lentamente de quem ela era antes de cair nesse universo paralelo. Ainda desatenta por conta do embrulho, uma das grelhas da cozinha começa a pegar fogo, provocando assim, uma grande explosão. A personagem acorda em sua cama, retomando ao mundo real, e percebe que o Purgatório foi na verdade um grande pesadelo!
AMOSTRA
CAPÍTULO 1
As páginas a seguir ilustram o primeiro capítulo do quadrinho “Purgatório: a cozinha fica aqui”. Nele, a jornada da personagem se inicia, angustiada pela busca de emprego, recebe um misterioso pacotinho da trocadora do ônibus. Porém, inesperadamente, sofre um acidente que vai levá-la a uma realidade paralela, chamada de Purgatório.
Roteiro: Ana Carolina Oliveira
Ilustrações: Ana Carolina Oliveira
Letreiramento: fonte "Ler" criada por Rapha Pinheiro
Há mais de cinco anos, venho elaborando esse projeto de quadrinho de autoficção. Já transformei o meu diário num roteiro, trabalhei no storyboard e já desenvolvi o layout de 90 páginas. Vale ressaltar a minha realidade como uma mulher negra sem muitos recursos materiais, mas que vem acreditando na ascensão social por meio da educação pública, foi um fator na demora da conclusão da obra. Logo, não tinha conseguido completar toda a publicação ao longo desses anos porque precisava dividir meu tempo entre os estudos e trabalho. Porém, com o fato de Purgatório: a cozinha fique aqui, ter sido contemplado no edital da Lei Paulo Gustavo de 2023, dediquei atenção exclusiva, e isso permitiu que a obra fosse concluída ao longo de 2024.
Realização:
JUSTIFICATIVA
A ideia de criar o quadrinho surgiu durante minha segunda graduação em Artes Visuais, no ano de 2016, após ter me formado também em Gastronomia e ter trabalhado por 6 anos como cozinheira. O trabalho na cozinha é muito árduo, além de nutrir uma cultura muito forte de assédio moral e sexual, questões pouco discutidas entre os profissionais da área. Nesse cotidiano, mesmo depois de um dia exaustivo de trabalho, uma válvula de escape para mim, foi chegar em casa e escrever inúmeras páginas em um diário pessoal sobre as interações abusivas dos meus chefes, ou de colegas de trabalho. Anos depois, esse material serviu de base para a elaboração deste projeto, e mesmo que o diário contenha memórias amargas, sua produção se tornou um meio de eu reinterpretar essas experiências.
Quando li Persépolis (Marjane Satrapi, 2007), entendi que também poderia transformar meu antigo diário pessoal em uma história em quadrinhos. A narrativa de Satrapi é tão incrível que consegue fazer o leitor refletir sobre a vulnerabilidade da vida em situações de abandono político e social, nela, a artista retrata da sua infância à vida adulta no Irã, durante e após a Revolução Islâmica. Desde 2017, eu senti que meu diário precisava sair da minha esfera pessoal e dialogar com a vivência de mais pessoas. Toda essa jornada desperta meu interesse para materializar memórias que nos ajudem nos nossos processos de cura interna.
Desta forma, o interesse por quadrinhos autobiográficos para mim é tão grande, que também decidi pesquisar Quadrinhos Autobiográficos na minha pesquisa de mestrado, concluída em março de 2024. Durante dois anos mergulhei nesse gênero narrativo que dá conta de narrativas tão complexas e isso também me ajudou a estruturar meu quadrinho e a construir uma narrativa inédita. Durante o mestrado, minha pesquisa foi selecionada pelo programa de educação do governo canadense intitulado de Emerging Leaders in the Americas Program (ELAP), onde tive a oportunidade de pesquisar sobre narrativas gráficas autobiográficas ao longo de seis meses no ano de 2023 na Ontario College of Art & Design University (OCADU), em Toronto. Ao longo do intercâmbio, também tive a oportunidade de acompanhar o Toronto Comic Arts Festival (TCAF). E a partir do contato com os artistas e diversas narrativas, a necessidade de compartilhar meu quadrinho aflorou ainda mais.
Além disso, a partir do contato com a obra do Marcelo D'Salete, de quem eu sou fã, também percebi a importância de criarmos espaço para mais vozes negras de quadrinistas no cenário brasileiro. Sua obra também me mostrou como narrativas contadas por pessoas racializadas no Brasil são fundamentais para preservação da nossa memória histórica e social. Por fim, acredito que a minha experiência pessoal ressoa e se assemelha às vividas pelos meus futuros leitores.
© 2023 Ana Carolina Oliveira